Quando vi a Mariana sorri de alívio e depois abracei-a enquanto me partia a rir, não sei o que me deu, estava cansado. Encontros improváveis têm destas coisas—costumamos gostar das surpresas que nos safam de problemas inesperados.
O que me aconteceu não é mais do que um preciosismo. Foi dificílimo dar com a casa dela, não conheço a zona este de Amsterdão da mesma forma que não conheço a oeste, a norte e a sul. E é claro que não estou acostumado à organização citadina da cidade—a definição das moradas obedece a outra ordem, não sabia o que o «HS» a seguir ao 27 queria dizer (mais tarde percebi que significa «house»). Tinha pedido um Uber em casa do Tomás (onde não tinha espaço para passar uma noite que chegou sem aviso já que ele estava a dar asilo ao Francisco e ao Tiago), fi-lo através do wi-fi. Quando saí para a rua para me encontrar com o motorista estava já incontactável, sem rede—os telemóveis portugueses também se apagaram nos Países Baixos. Assumi simplesmente que o meu estava avariado pouco depois de assistir ao evidente cancelamento do meu voo de regresso para Portugal porque um mal nunca vem só.
De «engenharias» não percebo, sei lá como é que funciona a rede elétrica ao certo, não toco em questões técnicas e tenho pena de que determinados agentes da sociedade estejam a aproveitar-se de um tema complexo para fazer política à queima-roupa—mas até ter percebido que os portugueses temporariamente no estrangeiro também não tinham rede móvel julguei que o meu telemóvel estava oficialmente nas cascas e que teria de realizar um novo investimento. Como faço (e fazemos) tudo naquele rectângulo escuro e raso julguei que esta feito. Não estava («estar feito» é condição impossível, não é mais do que uma ameaça ansiosa).
Acabou por ser bastante simples ir de Eindhoven a Amsterdão sem telemóvel (pudera, estou mais perto dos 30 do que dos 20), ia usando aqui e ali as redes públicas de internet e como na carteira levava um escudo capaz de se bater contra todos os males modernos (shoutout Revolut) fui-me apercebendo de que podia estar descansado.
Longe de casa demorei a perceber o que se passava até porque tive rede até bastante tarde. Senti-me o maior, achei-me impune porque revelava uma desfaçatez tamanha perante o apagão que surpreendeu a Península Ibérica. Mesmo assim mais tarde senti-me desprotegido, exposto, humilhado e violado pela situação ainda que estivesse a milhares de quilómetros de distância. A partir do momento em que em nossa Casa se sofre nós também sofremos nem que seja um pouco e de nada interessa se estamos mais ou menos próximos. Portugal estava um caos, Espanha estava pior, a Europa poderá ter-se safado de um apagão generalizado por «isto», por um curto-circuito, por uma velha torradeira que não fez das suas. Lá está, exactamente, não sei, não sou especialista. Eu tinha razões para estar descansado, já sabia que o mais provável era cancelarem-me efectivamente o voo tanto que não fiquei surpreendido com o desfecho de um dia que quis ser inesquecível à força toda. Acabei por ficar mais chateado com a chatice com que teria (e tenho) de lidar—e com a primeira perspectiva de ficar mais um ou dois dias em Amsterdão. Estar retido numa capital europeia não é o pior dos castigos, tenho noção disso, reconheço sem problema o meu burguesismo. Acontece que não me agrada a ideia de regatear voos com companhias aéreas low-cost especialmente quando a minha cabeça está a afundar-se num mar de neura e o meu corpo procura recuperar de ressacas consecutivas.
O apagão não consigo romantizar, nem tentei ir por aí, que estupidez. Não compreendo o que tem levado as pessoas a celebrar um evento praticamente distópico, tenebroso—percebo que é amoroso voltar a confiar em rádios a pilhas, é óptimo ter uma desculpa fidedigna para não trabalhar, é tentador ir para o café mais próximo salvar imperiais, é tão bom ler à luz das velas, cozinhar à luz das velas, jantar à luz das velas, beijar à luz das velas, sei que é de certa forma refrescante sair à rua e ver a cidade concentrada em tudo o que é sítio e tudo ao mesmo tempo. Em condições normais estaria feito tolo a ver o lado bom deste acontecimento inédito, quem me conhece—e já agora quem me lê—sabe que eu sou um romântico de muito mau gosto mas estou apenas preocupado (não assim tanto), confuso, receoso, perdido porque ainda não se sabe ao certo qual é a origem desta falha. De qualquer modo quando se souber apenas os das «engenharias» a irão compreender, querem apostar. A questão é que tudo o que de mais analógico e humano foi feito durante o apagão pode ser sempre feito: os vizinhos não se vão embora.
O facto de não ter estado em Portugal também faz com que não romantize o apagão, romantizo apenas o que vivo. Tenho chegado à conclusão de que revelo uma predisposição danada para não estar no país quando se dão coisas surpreendentes (na escola era apenas quando faltava que velhos rivais recriavam a Batalha de Waterloo na fila para a cantina). De qualquer modo é o mesmo facto de não ter estado no país quando o apagão se deu que me permite analisá-lo com os meus próprios olhos.
Sem querer então enaltecer as dez ou onze horas em que o país esteve sem electricidade reconheço que o caso—tendo-me apanhado à solta pela Europa—mostrou-me num momento muito específico como é que era viajar pelo Velho Continente num passado não muito distante e que foi vivido em carne e osso pela minha Mãe no final da década de 1980 aquando do seu Interrail. Bem vos disse que isto não é mais do que um preciosismo.
Estar desorientado mas não perdido numa cidade europeia quando já é de noite, as luzes das casas revelam interiores acolhedores, as pessoas (já em número reduzido) caminham calmamente em direcção ao seu destino final é uma experiência estranhamente relaxante. Talvez seja este o projecto europeu—desfrutar de lusco-fuscos produzidos pela Primavera e que dependem da força aromática e calorosa das glicínias. Simplesmente não dava com a casa da Mariana, o Uber tinha-me deixado na morada errada—vim a perceber que me havia largado a dez minutos de distância a pé. Estudei os prédios da rua com atenção e considerei tocar em todas as campainhas antes de ter perguntado a um jovem casal que se cruzou comigo onde raio era a morada que procurava. Disseram-me logo que seria no final da rua
— Oh, it’s near Trefpunt, the coffeeshop
— Alright, nice. Thanks a lot, bro
e por isso segui as indicações à confiança. Foi quando já não devia estar em Amsterdão que ela se-me revelou e tudo porque um apagão em Portugal fez com que não tivesse rede móvel no estrangeiro. É ridículo mas é a experiência com que tivemos de lidar e esta é a minha.
Neon verde enorme, cheiro pestilento e loja vazia, sempre vi a «coffeeshop» e depois vi o 27. Toquei à companhia com um ar bem parvo e quando vi a Mariana sorri de alívio e depois lá a abracei enquanto me partia a rir e confirmava que a única energia sem falhas é a dos amigos que temos. A rede elétrica pode ir abaixo as vezes que quiser porque os amigos nunca nos vão deixar ficar mal e muito menos a dormir na rua.
Agora que estou preso numa cidade que está apaixonada pela Primavera vou beber uma cerveja. E depois vou-me embora daqui.
Obrigado por lerem Ainda Bem Que Voltaste.
Se gostaram do que leram, façam subscribe e partilhem a publicação.
Prometo um novo texto todos os domingos.
Até já,