As melodias transportam-nos. Pegam em nós e atiram-nos para o passado. Não têm cuidado com a força com que o fazem. As melodias são muito brutas, mas não nos magoam. Pelo menos, essa não é a sua intenção, mas é sabido que, por vezes, abrem feridas na nossa memória; noutras vezes, saram feridas. As melodias não têm vontade própria. Elas não pedem para ser reproduzidas — existe sempre alguém que, de fora, as reproduz, levando-as às vidas de um número potencialmente infinito de pessoas que interagem com elas.
Há uns anos, na aldeia de São José das Matas, durante as primeiras semanas de julho, já se contavam poucas pessoas. Agora, é difícil calcular o número de habitantes da aldeia — e somar-lhe o número de pessoas que, não a habitando, por lá passavam temporadas veranis, como o Luís e eu. Nesse tempo, seria mais fácil fazer a conta. E a povoação teria mais pessoas do que tem hoje. Hoje, tem mais memórias do que pessoas — e tem menos melodias.
Não sei em que ano é que a carrinha da Family Frost entrou pela aldeia adentro pela última vez. É possível que, no derradeiro dia em que o veículo percorreu aquelas estradas, o Luís e eu estivéssemos por Lisboa, em casa. O que sei é que foram muitos os verões em que ele e eu esperámos aquela carrinha e ansiámos pela melodia, para sempre inesquecível, que, esgueirando-se pelo altifalante, anunciava a chegada triunfante do veículo amarelo.
Não éramos os únicos. Sei que nas Matas e em várias aldeias portuguesas outras crianças faziam a mesma espera. O interior português é formado por outros interiores — mais pequeninos — que permanecem afastados, mesmo que partilhem traços comuns.
Gosto de pensar que, à época, a Family Frost unia as pontas soltas de um país que não corrigia as diferenças entre as zonas litorais e rurais, nem tinha como corrigir. (É tão complicado estruturar um país, assegurando a sua unidade.) Mas à conta de gelados — e do amor desmedido das avós — as crianças, ainda que diferentes e distantes entre si, aproximavam-se, porque, um pouco por todo o país, pediam os mesmos gelados, confiando nos mesmos sabores.
Partilhámos gostos. Agora, partilhamos memórias. Memórias doces. Memórias que, se expostas ao sol, derretem na mão.
A nossa Avó não tinha noção da quantidade de gelados que nos comprava. Éramos só dois, mas tínhamos direito a caixas e caixas de gelados. Dávamos conta do recado. A seguir a cada almoço e jantar, comíamos um. Por vezes, ao lanche, comíamos outro. A nossa Avó, que nunca rejeitou um doce, comia connosco. E a Rola também. (A Rola foi a criada que acompanhou a nossa Avó durante toda a sua vida.) Gelados para todos.
Olhando para a oferta, era difícil escolhê-los. Eram tantos. E, a cada ano, novidades ainda mais frescas. Lembro-me de quase todos os gelados. Só não me lembro dos nomes — mas dos sabores não me esqueço. A verdade é que, naquela altura, apontava mais do que falava. Dizia “quero estes” ou “quero aqueles”. O senhor da carrinha achava piada, e consentia o meu pedido. Lembro-me bem dele — do seu polo amarelo e do boné encarnado que usava. Até ao dia de hoje, é o senhor da Family Frost, e desconfio que terá esse nome para sempre. É um bom nome, diga-se. Muito justo e muito verdadeiro, apoiado numa associação mental de criança, que pensa muito em gelados e pouco nos episódios que está a registar na sua cabeça.
As crianças comem gelados com a testa. Quando crescem, e deixam de ser crianças, passam a comê-los com o coração, porque reconhecem que um gelado não era apenas um gelado — era uma parte muito pequena, mas tão saborosa da sua vida, que representava planos mais completos e preenchidos (que esperavam pela sua revelação).
Há uns dias, a partir de Barcelona, o Luís enviou-me um reel que prestava uma homenagem justa à Family Frost, já que este negócio foi essencial na nossa infância e na de tantas crianças portuguesas (e também europeias). Ri-me, mas senti um nó na garganta. De seguida, quando escutei a melodia, levei um murro no estômago, e soube, nesse momento, que, para recuperar do choque violento, precisaria de um gelado — mas de um que fosse oferecido pela nossa Avó, e comido no terraço, junto dela e do Luís, ao fim da tarde, quando as sombras da trepadeira iniciam o domínio sobre as paredes da casa.
Os anos passaram. A nossa Avó passou por nós. A Family Frost faliu. O Luís emigrou. A casa foi renovada, e continua bem viva. Eu passei a comer gelados com o coração. (Só por vezes os como com a testa.) E não esqueci aquela carrinha amarela, nem consigo esquecer a melodia que dela saía.
Agora que o verão chegou, e que as primeiras semanas de julho se aproximam, reconheço que arcas frigoríficas cheias de gelados das mais diversas qualidades interessam muito pouco. São importantes, claro, mas, quando comparadas com tardes de ócio infantil, com brincadeiras rafeiras com o Swing (cão eterno e querido), com períodos de sesta, com noites estreladas, e com horas a ver a nossa Avô a cozinhar para nós têm muito menos sabor.
As infâncias no campo são deliciosas. E o amor que as avós têm pelos netos tem tanto açúcar.
Uma melodia, uma notícia e um álbum:
A melodia da minha infância no campo:
A Family Frost faliu. Sabe-se pouco do caso. Em abril de 2012, o Correio da Manhã, via Lusa, deu conta da insolvência da empresa. A notícia é esta:
Os funcionários da Family Frost queixam-se de falta de informação sobre o pedido de insolvência da empresa de venda de congelados feito em Março. Dizem que o processo é "obscuro".
Com salários em atraso há quatro meses, um dos vendedores da empresa no Algarve diz que só descobriu o que se passava por conta própria. O pedido de insolvência foi entregue no Tribunal do Comércio de Lisboa em Março, mas a informação só chegou aos funcionários do Algarve por um anúncio colocado no centro de distribuição. No documento, lê-se que a empresa “continua a operar” e que o procedimento foi “necessário para a apresentação de um plano de recuperação”.
A Lusa tentou, sem sucesso, uma reacção da administração da Family Frost.
O Reddit é um lugar espetacular. Através deste post, sei que a Family Frost continua a ser relevante na vida — e na memória — de algumas pessoas. Logo, esta crónica poderá fazer sentido na vida de algumas pessoas. Espero que da vossa também.
Tenho noção de que se trata de uma recomendação muito específica; é provável que não achem piada ao álbum de Ernest Hood, Neighborhoods, de 1975 — consiste num field recording. Contudo, é boa música para estudar e/ou trabalhar. (A música ambiente raramente falha.) Faço a recomendação porque, numa das faixas, escutamos a felicidade de duas crianças quando lhes perguntam sobre popsicles: gelados! Aqui e na América. Mas tenham cuidado: podem tropeçar nas vossas próprias memórias, criadas a partir das do músico norte-americano.
Há quatro anos, no Altamont, escrevi um texto sobre o álbum. Para os interessados, aqui têm o LP:
Obrigado por lerem Ainda Bem Que Voltaste.
Se gostaram do que leram, façam subscribe, e partilhem esta página com quem possa gostar destas crónicas — e com quem passou horas a decidir sobre que gelados escolher à frente da carrinha da Family Frost.
Prometo um novo texto todos os domingos.
Até já,